Rui A. Pereira
O traçar de Teresa Cortez assinala, em evidência, o seu uso como forma de expressão. Joga com o claro e o escuro, as camadas sobrepostas e justapostas que se determinam e elevam, em cada obra, na sua totalidade, revelando cor. Tal como a oriente, a sua base pictural vive da essência da matéria, com a tinta no papel, na tela, ou na cerâmica, a discorrer do seu pensamento. Com tinta espessa ou mais aguada, a autora figura, delineando, tingindo a diversidade da cor, da tonalidade, fazendo sobressair cada nuance, cada cor.
Com efeito, a autora, para dar forma a uma peça cerâmica define, em primeiro lugar, no suporte de papel, o seu desígnio. O fundamento desenhado a lápis de cor, aguarela ou noutra pigmentação, é aqui ponderado. Dá-se a conhecer e é, posteriormente, transposto, recriado, para a terracota, para uma placa cerâmica, para um objecto escultórico ou para uma jarra. É nesta fase criativa que é esclarecida a sua maior ou menor componente táctil e a sua intensidade cromática. As formas podem ganhar volume, alto ou baixo-relevo, ou simplesmente serem pintadas para, seguidamente, conhecerem a cozedura na mufla, a mais de 1000 graus centígrados. Uma peça bidimensional ou nas suas três dimensões obtém aqui a sua pele, o seu tecido cerâmico mais ou menos vidrado. O deflagrar do calor mais enérgico incita a uma explosão cromática, que dilata o seu valor expressivo de forma ilimitada.
Prato circular com um par de gafanhotos, com cores contrastantes, pousa sobre um ramo de morangueiro, repleto do seu suculento fruto, rubro.
Um rosto frontal e um dragão de olhos abertos sobressaem do fundo de cor quente. A frontalidade com que somos encarados dilata toda a chama expressiva inerente à obra.
Figura no feminino com pescoço longo, bem esguio. O cabelo é ruivo, o rosto é pálido e as suas vestes de um padrão florido combinam com o seu chapéu, também ele de coloração azul.
Figura gémea em transmudação, entre o branco e preto, com asas. Os rostos são humanos e o corpo de pássaro. Esta cerâmica horizontal desenvolve-se na sua forma oval.
Dois pingos lacrimais.
Dois azulejos de forma quadrangular, em relevo, evidenciam dois rostos frontais. Dois pingos lacrimais percorrem a face de um deles. Ambos nos encaram de frente e não verbalizam contentamento.
Liberdade, janelas, azulejos
que se abrem ao horizonte
Painel de azulejos quadrangulares, com relevos embutidos, que se distribuem por uma malha predominantemente azul e esverdeada. O jogo formal da forma quadrada é evidente, particularmente em cada azulejo, mas também na totalidade da obra. Esta forma com a pigmentação mais saturada ou mais luminosa gera um padrão ritmado persistente. Surgem como rebuçados coloridos, de paladares frutados, com aromas da natureza, com pássaros, meninas e meninos a entrarem em toda esta festa dos sentidos. O coelho, a borboleta arco-íris, o gafanhoto saltitante, os pássaros na água e no céu, a amiga flor, tudo espreita de um mundo encantatório doce, terno, particularmente amistoso. O limão em rama rasga o azul mais intenso, a cereja e outros frutos vermelhos, um cesto repleto, tudo é fruto, tudo é natureza. Este painel expressa, na sua substância, uma raiz criativa ilimitada. A manifestação da liberdade, com as janelas que são azulejos, a abrirem-se para uma rua, para um jardim, para o campo mais interminável, é o azul do ar livre, do recreio, do tempo livre que corre e voa lá fora.
Noutro trabalho de coloração branca, a liberdade é revelada por um mundo sobrevoado por um par de pombas brancas, com um outro par, este humano, a atentar no momento.
As pombas, com Teresa Cortez, podem alcançar a cor e coexistem, de uma maneira geral, com os seres humanos. Num outro painel cerâmico uma figura feminina surge como um autêntico campo florido. Repleta de flores, dois pássaros beijam-se, é o amor… o choro vermelho, aqui, parece falar-nos de um coração ferido. Noutra obra, duas pombas justapõem-se em puzzle, com os humanos. De perfil, tudo é um olhar livre na direcção do futuro.
A representação simbólica no feminino é uma preocupação constante desta artista plástica. Dizer mulher é aqui afirmar a sua presença como tal e em plenitude, é desenhar o seu auto-retrato, é esculpir a Frida Kahlo em flor vermelha, é pensar no feminino, com cabelos esvoaçantes, livres como o vento: são corpos que se confundem com uma natureza em flor; são ramos carregados da folha mais verde ou colorida; são um rosto onde nasce uma flor sem sentido aparente; um rosto chora, outro sorri, outro simplesmente nos encara de frente, com os seus brincos de cereja; uma é o capuchinho vermelho, outra é uma menina com laços vermelhos a agarrar as suas tranças; outra é sangue, é dor, é o seu coração arrancado do peito; uma outra mulher surge com a sua máscara, feita pelo olhar de duas pombas brancas e, noutra cerâmica em alto-relevo, é um sol, uma flor, ou a lua cheia, também ela luminosa; noutra, os cabelos são ramos de trigo da planície e a roupa é uma «vila» de caracóis… casas da nossa terra vestidas no feminino, a Frida e o Diego abraçam a pomba branca do amor e, noutra também, ela pinta o seu auto-retrato e, no seu imaginário mais infantil, surgem as Rainhas e as Princesas mais idílicas das histórias de encantar. Teresa Cortez, ao expressar o feminino, está a declarar um espaço de vivência, de expressão plástica, para um mundo em igualdade.
Texturas em relevo são objectos cerâmicos que se elucidam pela sua aparência. A superfície, a «pele» lisa ou rugosa, malha, trama, formas orgânicas tácteis, conhecem-se, apreendem-se com o impacto visual, ao conhecermo-las e ao encararmo-las com as próprias mãos. A linguagem plástica adoptada para a criação destas peças patenteia um propósito epiderme, dos objectos, das coisas, do «mundo». Dar sentido táctil ao corpo das coisas, no seu aspecto exterior, mas também, à sua totalidade. Uma manifestação sintética que é em si um reflexo, uma expressão, um apelo a todos os sentidos. As formas dão-se a conhecer como significantes do sentir.
Cerâmica com história
A artista conta histórias, narrativas, apresentadas por pinceladas que se soltam, como se nos estivesse a contar, em cada trabalho, a sua história. No espaço terreno entre o céu e a terra define a natureza, com lugares reais e/ou fantasiados, com pessoas, animais, contos de fadas, lendas e muitos pássaros, gatos, peixes, borboletas e libélulas a «desaguar» por aqui. O mundo exótico da natureza, da bicharada, árvores, folhas, a cerâmica com histórias, calçadas ou descalças, com príncipes e mulheres trabalhadoras, Cinderelas e Brancas de Neve, com porcos na fábula mais amorosa, gatos que calçam umas grandes botas, rainhas e reis coroados também no amor e o sonho do lobo de papo cheio, a pensar no Capuchinho Vermelho. O João Ratão abraça a sua noiva, Mulher Cigarra. Nesta cerimónia nupcial, com coelhos, porcos, cavalos, caracóis com a casa às costas e uma menina, todos estão juntos em festa por um final bem-aventurado… casaram-se e foram felizes para sempre. «Em caras brancas ou almas brancas», a Branca de Neve afinal tem não só o cabelo negro como também a pele negra, e o seu príncipe encantado, de turbante, parece vir da Palestina. Aqui, a madrasta má é branca e os anões têm cores. Todos se encontram juntos por um mundo fraterno. Aqui, na diferença de cor e género, todos somos diversidade em igualdade e todo o tipo de estereótipos são postos de lado.
Em Teresa Cortez, o gosto de criar a recordar histórias de infância e juventude é uma forma de se avizinhar do mundo fantasia. Com a cerâmica, desenha os seus actores e figurantes, define adereços, cores em contraste, evidencia em relevo uma flor, uma menina, patos e patinhos, pavões, palcos que são o interior de uma casa, ou lá fora, e numa das suas cerâmicas podemos mesmo encontrar a autora representada a pedalar. A paisagem é definida por tons ocres, com o sol a espreitar com um laranja avermelhado. O seu vestido é como um jardim florido e o seu caminho é o lugar da fantasia sem fim, porque a sua viagem é o prosseguir sem destino, sem hora marcada. Tudo é livre como o vento e a bicicleta, ou como um menino com chapéu de papel e um cavalo de madeira, que vai também ele a galope, com o sol à espreita. Tudo é pretexto para o contentamento. Com ritmo, com movimento, com o som desenhado, tudo é razão para assinalar o toque que amanhece, ao som de uma corneta que irradia o estrelato. «Os sons produzidos» pronunciam Amor. Aqui, até um gato e um rato são dois fortes cúmplices, em amizade.
Jarras cerâmicas
Nas jarras cerâmicas, Teresa Cortez molda a terracota ajustando configurações imponderáveis. As suas mãos modelam recebendo representações do mundo animal, da natureza ou, simplesmente, apresenta-nos um rosto. São formas volumétricas circulares, cilíndricas, mais ou menos ovais, quase esféricas, que hospedam, em alto-relevo, os seus residentes. São motivos florais, rosas em coração, malmequeres, bem-me-queres, adereços coloridos da natureza, rostos femininos individuais ou em grupos, com cabelos lisos, em trança, pássaros, sapos, carochas, porcos que brotam em cada vaso. Cada peça encontra a sua essência no corpo gerado pela massa, que assim define o corpóreo.
Modelar cada objecto escultórico é apreender um sentido, uma fisionomia, uma aparência inscrita na matéria indagada. O vindouro é o resultado da envolvência, do toque que amassa, metamorfoseando-se. A matéria orgânica, que brota do corpo terreno, atenta aos nossos sentidos. A terracota, ao ser trabalhada pelas mãos da artista, ganha um valor estético como objecto escultórico. Exalta-nos para um olhar circundante, com cada volume a acompanhar o vazado de cada jarra, de cada recipiente.
As mãos da autora são as ferramentas integrais que abraçam o nascimento de cada obra. Numa cabeça pálida, com uma bandolete de jarras brancas, graciosas, exprime-se a paz, em quietude. Noutra, o rosto de uma mulher com sobrancelhas que se tocam, segundo a configuração monocelha, inclina-se, deitada sobre o seu lado esquerdo. Na sua orelha à vista sobressai uma flor com pétalas vermelhas em diálogo com os seus lábios, também eles rubros. A cor viva sobressai do rosto desmaiado, adormecido, ao entrar no mundo «polinizado» pela cor quente, elogio ao sonho mais ardente.
Uma mulher de vestes brancas, rosto branco abraça um sapo e o danado do macaco ao seu ombro está «morto» por entrar na brincadeira. Animais e mulher saúdam o coração da floresta mais tropical.
Noutra representação, no feminino, um pequeno veado pousa no seu colo e um pássaro surge nos seus cabelos entrançados. O rosto e as vestes são brancos, e em tudo o que sobra a pigmentação estabelece cor.
Na banheira, a artista explora o valor da liberdade, despida de preconceitos, a nu, a descoberta da amizade transparente, a água como manto para o nosso corpo, como terapia da mente, do corpo são, limpo, com o aroma mais magnético para os sentidos.
O banho a Oriente, em especial na China, era tradicionalmente um momento para aliviar qualquer tipo de tensão. As casas de banhos possuíam tanques de água, onde se reuniam homens e mulheres para desfrutar de um momento integral de higiene e, também, de confraternização. Massagens, corte de cabelo, pedicure, um bom jogo de tabuleiro, uma boa conversa, o local ideal para cantar sem restrições, tudo acontecia no silêncio do caudal da água.
Em Portugal, o banho nem sempre foi entendido como tempo de lazer… a higiene era o principal motivo para o banho, para arrancar a sujidade «carraça», mais apegada. A banheira, para muitos de nós, foi e é, ainda hoje, um local lúdico sem-par. Onde pensamos nas coisas boas da vida? Onde sossegamos um mau momento? Onde brincamos com um barco que nos leva a novos mundos? A banheira é onde um simples mergulho é pretexto para nos transformarmos num ser aquático. Quem não experimentou fazer ondas? Quem não brincou com o eterno amigo pato, de um plástico flutuante? Na banheira, Teresa Cortez, cria objectos escultóricos, de pequenas dimensões, que recriam o palco, a vida mais simples, descomplicada e descontraída. Na banheira, submerge-se o corpo e a mente e recria-se a nossa própria identidade? Esse desafio é aqui apresentado como uma caricatura do nosso quotidiano, em que a narrativa que descobrimos, nas banheiras de Teresa Cortez, não tem barreiras: uma menina vestida está sentada sobre um pavão para, a galope, mergulhar no âmago da banheira; outra, com um longo par de tranças, espreita, em pensamento, o horizonte; um pássaro vermelho com uma cachopa, em conversa olhos nos olhos; uma jovem de biquíni, estendida sobre um macaco, parece banhar-se no sonho mais azul; são várias as pessoas e animais que se encontram no caudal azul, mais translúcido. Galos, galinhas, pavões, um coelho, uma mulher a nu, um homem despido, o Pessoa, uma freira vestida a rigor, a leitura na banheira; a explanação não pára e continua no sofá e na cama. Corpos mais ou menos despidos, com gatos e pessoas, exteriorizam liberdade. Um sapo e um burro sentados, cada um na sua cadeira, frente a frente ou de costas voltadas um para o outro? Um elefante que mais se parece com uma zebra, e uma menina com um laço vermelho na cabeça; num sofá, com uma malha do tipo da pele da girafa, aconchega uma sua congénere, real; a Marilyn Monroe, mesmo sentada, tem a saia esvoaçante; os senhores e senhora, gatos e gatas, têm uma presença humana; uma menina rechonchuda brinca com um porco, também ele anafado. Velhos, mais novos e crianças, todos frequentam o habitat mais amistoso.
Na água, corpos despidos somam-se ao corpo translúcido aquoso. Pinceladas sobrepõem-se: azuis, esverdeados e branco, água serena ou agitada, corpos flutuantes, que espreitam ao se banharem na corrente. Na cerâmica, barcos à vela são detectados na linha do horizonte; na praia, corpos deitados, nudistas, expõem-se ao sol mais ardente; na imensidão das águas, a silhueta de um corpo, nádegas, seios, pés, o sexo, tudo é corpo, tudo é natureza, que mergulha no oceano; um casal pula sobre as ondas do mar, uma menina dá aos pés para boiar, rostos fundem-se nos espelhos de água com peixes em cardume por perto, rodeados pelo corpo humano, pelo corpo terreno da água e pelo ar mais cristalino!