Henrique de Melo
Desde o fundo dos tempos e em todas as latitudes que os seres humanos se dedicaram a transformar cereais crus em Pão.
Ao pioneirismo dos primeiros artífices, tenham eles sido pessoas singulares, grupos familiares ou núcleos comunais, é devido o estatuto cimeiro de matriz universal e fundador da arte culinária, entendida esta como a prévia preparação e posterior passagem dos alimentos em estado cru para cozinhados, recorrendo ao manejo controlado do fogo.
Encadear todas as tarefas que compõem este processo de transformação, desde a escolha dos cereais existentes na natureza circundante e que se revelem como os mais adequados para satisfazer aquele desiderato, passando pela aplicação dos meios e instrumentos mais indicados para triturar grãos de forma a obter farinha, amassar com água, fermentar, concluindo este ciclo com a cozedura da massa são, ainda hoje, as etapas essenciais do fabrico do Pão, entroncando naqueles princípios de sequenciação todas as outras actividades culinárias relacionadas com a confecção de alimentos cozinhados.
Pão, ao qual a sensibilidade de quem o confeciona desde logo conferiu atractivos e diferenciação dos sabores para satisfazer o gosto e paladares das diversas comunidades humanas, fundamento basilar da arte culinária.
Arte milenar do Pão, sempre renovada em cada época e em cada região do globo, permitindo a este alimento conquistar um lugar privilegiado nas mesas de todos os povos e, no plano bíblico, ganhar o universal simbolismo ético de partilha, expressão máxima da solidariedade humana.
Procedimento idêntico, no tempo, espaço e processos, decorreu no plano das Artes Plásticas, quando o Homem, recorrendo à cozedura, começou a transformar a argila (em português corrente, o tão popular «barro») primeiramente em terracota e, depois de saber vidrar, em cerâmica.
Também neste caso e desde os seus primórdios, o Homem encontrou e elegeu o barro como a matéria-prima de excelência para moldar os objectos que pretendia criar e neles traçar riscos, vincar linhas, inscrever símbolos, registos, pintar e, finalmente, cozer.
Peças que, decorridos milénios, ainda hoje encontramos inteiras ou só meros fragmentos, são testemunhos datados e comprovativos de que, desde início, a argila foi o material de suporte naturalmente escolhido pelos primeiros homens para, com as suas próprias mãos, construir objectos e neles deixarem expressas as suas concepções estéticas, satisfazerem o desejo de transmitir ao «outro» a sua capacidade de sonhar e idealizar conceitos, reflectir sobre a necessidade de criar objectos para solucionar problemas da vida diária, e corporizar esse desiderato.
Procedimentos criativos executados conforme a imaginação e sensibilidade estética de cada artesão/artista, sejam figurações geométricas, míticas, naturalistas, símbolos identitários de uma comunidade impressos em placas de argila, ou utensílios tridimensionais com meras funcionalidades utilitárias.
Preferência primeira testemunhada pelos inúmeros objectos inteiros ou simples fragmentos em terracota, encontrados juntamente com ossadas humanas, em distintos locais de Oriente a Ocidente e de Norte a Sul do globo terrestre e, muitos deles, datados dos primórdios da humanidade.
Fragmentos que resistiram a uma destruição total pela circunstância da matéria-prima de que são compostos, o barro, depois de amassado com água e de passar por uma sequência de tarefas manuais até entrar em processo de cozedura (numa fase mais primitiva talvez por inadvertida e continuada exposição ao sol) que o transformou em terracota, conferindo a este material uma textura, consistência das formas, capacidade de retenção de pigmentos de cor e durabilidade que tanto nos surpreende e admiramos, nomeadamente pela sua Arte.
Acervo arqueológico que revela evidentes motivações estéticas por parte dos seus autores, justificando por isso que se confira à argila um lugar ímpar e sem paralelo comparativamente a qualquer outro material de suporte utilizado pelo ser humano para servir de registo às suas primeiras manifestações de Arte.
Cerâmica surgida do casamento perfeito entre as condições naturais da argila, plasticidade e resistência térmica à cozedura, com a capacidade humana para entender a sua adaptabilidade à criação artística, qualidades intrínsecas que foram sempre uma referência para outros materiais e formas de expressão plástica.
Saber reinventar-se ao longo de séculos, permitindo-lhe acompanhar ou mesmo liderar novas correntes estéticas, foi o «segredo» que levou à escolha preferencial da cerâmica por parte de múltiplos artistas em todas as épocas e continua a ser um atributo fundamental para dar satisfação plena às exigências requeridas pela arte contemporânea.
No caso específico de Portugal, quer pela originalidade do seu harmonioso entrosamento com a arquitectura religiosa, militar, civil, quer pelas diversas temáticas abordadas pelos artistas que lhe deram e dão preferência para dar expressão às suas criações, a cerâmica ganhou um relevo que lhe permite ser legitimamente reconhecida, a nível nacional e internacional, como um grande e original expoente das artes plásticas portuguesas, se não mesmo o maior.
Em Portugal, os primeiros revestimentos importados de Sevilha (no século XV) somente em azulejaria, não se deixaram confinar nos limites estreitos de uma arte decorativa subsidiária da arquitectura mas, pelo contrário, frequentemente alteraram os termos daquela correlação, ganhando para si a primazia dos méritos artísticos do edifício (religioso, militar, civil, …) passando quase despercebida a qualidade da estrutura arquitectónica que lhe serve de suporte.
Embora desde o começo do fabrico de azulejos dentro das nossas fronteiras, no início do século XVI, a cerâmica tenha construído e consolidado uma vincada identidade própria no domínio da azulejaria, todavia sempre se reviu como fruto do cruzamento de culturas, civilizações e estilos de vida de povos que, na Península Ibérica, partilharam com o nosso país espaços comuns ou contíguos.
Contributo cultural e artístico que, desde os seus alvores, se encontra plasmado de várias formas na cerâmica portuguesa e foi revigorado nos séculos seguintes com a intensificação dos nossos contactos socioculturais e intercâmbios comerciais com o Extremo Oriente.
Aculturamento muito em particular reflectido e enriquecido pela «descoberta» e maravilhamento proporcionado pelas refinadas técnicas de fabrico, decoração, pintura e modelação da porcelana chinesa.
Arte cerâmica portuguesa que, a partir dos finais do séc. XIX, e muito impulsionada pela revolução técnica e artística que foi introduzida por R. Bordallo Pinheiro, se manteve igualmente na primeira linha de resposta ao enorme desafio imposto pela «arte moderna» ganhando, particularmente após o 25 de Abril de 1974, uma nova dinâmica e amplitude conceptual que se estende até aos nossos dias.
«Aggiornamento» envolvendo a adaptação a novas técnicas, dimensionamento e volumetrias das placas de argila, diferentes das utilizadas na azulejaria tradicional, temas e formas de expressão plástica que, sem perda das suas características sui generis, permitiu à cerâmica portuguesa e aos artistas plásticos seus cultores acolher, reinterpretar e permutar influências e ensinamentos com culturas de diferentes quadrantes, honrando assim os seus pergaminhos de «arte maior» no panorama das artes plásticas portuguesas.
Globalização que podemos constatar através das obras de ceramistas que, no nosso país e no estrangeiro, têm os seus trabalhos colocados em espaços e locais públicos, privados, museus de referência e prestigiadas colecções particulares.
A extensa obra de Teresa Cortez, particularmente como ceramista, retrata bem o enquadramento do seu percurso artístico desenvolvido ao longo das últimas quatro décadas e, de algum modo, espelha algumas das mutações entretanto verificadas na arte cerâmica em Portugal.
Tomemos como exemplificativa a multiplicidade de opções temáticas que se constatam no conjunto dos trabalhos expostos; a apetência de Teresa Cortez para realizar trabalhos com escalas métricas tão dispares, desde pequenas esculturas até painéis murais modelados em placas de grande dimensão; o gosto por manusear directamente o barro; ter iniciado a sua formação prática com uma vivência experimentalista realizada em ambiente fabril.
Estas referências, sendo por si só demonstrativas da diversidade de formas de intervenção artística que trabalhar com barro possibilita realizar, constituem igualmente impressivas marcas curriculares da linhagem de muitos dos ceramistas portugueses surgidos com a «arte moderna».
Da leitura do conjunto da sua obra ressaltam igualmente datações marcantes da sua progressão artística, nomeadamente as épocas em que os trabalhos foram realizados, influências sofridas de outras formas de expressão plástica, iniciação no campo do desenho e da pintura em papel para poder executar maquetes de painéis em cerâmica, utilização de técnicas aquelas que, posteriormente, lhe despertou o gosto e a apetência para desenvolver autonomamente aquela faceta de artista plástica.
Tal como constatamos ao longo da história da arte cerâmica, nas suas criações Teresa Cortez soube igualmente reinventar-se na elaboração das formas, temas e cores.
Inquietude artística da qual a Retrospectiva agora apresentada na Fundação Oriente nos deixa uma excelente visão panorâmica.