um mundo lúdico à espreita – 45 anos em retrospectiva

Rui A. Pereira, Curador

A exposição «Um Mundo Lúdico à Espreita», agora apresentada no Museu do Oriente, constitui uma oportunidade única para, em retrospectiva, podermos apreender os últimos 45 anos da obra de Teresa Cortez.

Esta mostra constitui uma justa oportunidade para homenagear a extensa e diversificada obra desta artista contemporânea, ainda em plena actividade, sendo particularmente notável a sua intervenção como criadora de painéis murais em cerâmica.

Na verdade, Teresa Cortez, autora de mais de quatro dezenas de painéis em cerâmica (modelada e em azulejo) colocados em diferentes edifícios públicos e privados, situados em várias regiões do país é, seguramente, uma das ceramistas portuguesas vivas com mais obras integradas em projectos de arquitectura.

Além destes murais, a sua obra artística é, igualmente, composta por múltiplos objectos escultóricos em cerâmica, azulejos de pequena e média dimensão, desenho e pintura, trabalhos que têm sido apresentados em várias exposições individuais e coletivas, no país e no estrangeiro.

Não sendo situação ímpar entre os artistas portugueses contemporâneos, Teresa Cortez é uma ceramista que não revela praticamente nenhuma influência temática da azulejaria mural dos séculos XVI a XIX. De facto, temas religiosos, militares, palacianos e campestres estão, quase sempre, ausentes dos trabalhos da artista e, mesmo a opção pelos tons branco e azul, são pouco frequentes na sua obra. Diremos que as suas criações entroncam directamente nas origens orientais, com os «dragões» da civilização chinesa, de porcelana azul, no moldar português enraizado na cultura árabe – a influência mourisca, na técnica e no jogo de padrões geométricos, nos painéis cerâmicos de mosaico: o Hispano mourisco que, desde o século XVI, povoou o espaço arquitetónico nacional. A artista emprega o padrão cerâmico geométrico de influência mourisca, com o delinear livre e espontâneo que junta figuras humanas, vegetalistas, com a fábula. A fauna e a natureza por perto caracterizam histórias que irradiam ventos que se aproximam do oriente. São representações, pinceladas da natureza humana e vegetal em confluência.

Teresa Cortez molda, delineando azulejos, painéis, potes e jarras com animais e rostos, com elementos orgânicos a comungar o meio ambiente. A cerâmica bidimensional e escultórica tem como base técnicas milenares que, ao adquirirem um novo contexto expressivo e artístico, nos reportam para um presente, com o porvir. A sua obra afiança um caminho artístico vigoroso e inabalável, numa personalidade humanamente sábia e conhecedora, que não abdica da busca constante do conhecimento pela arte. Indaga, busca a novidade, a obra aberta num diálogo constante vivo entre a obra artística e o seu potencial contemplador – um vínculo fundamental com o corpóreo, como se em cada obra germinassem raízes, com circuitos de vida, cruzamentos que transferem informação e saber. Uma peça cerâmica surge aqui como um livro com histórias que não se encerram. A obra cerâmica de Cortez vive de um diálogo franco e sincero entre todos os que a habitam, como um alento, um festival de cor e formas para todos os sentidos, como um mapa-mundo, onde circunda e se encontra gente de todas as cores.

A luminosidade da sua obra conduz-nos para uma abertura que nos permite alcançar as pequenas coisas, verdadeiramente importantes… corações, rosas vermelhas, sinais de afecto, imagens, memórias, que nos fazem recuperar o tempo perdido num momento preciso – uma expressão universal de humanidade, que fomenta a paz – somar o mundo à arte.

Com efeito, Teresa Cortez, na fronteira de um lugar impreciso, exprime a nossa presença. O seu enfoque dirige-nos para a nossa existência, para as pessoas, para os animais, mundos imaginários e/ou reais, que propagam e enaltecem o espírito da natureza: na fragrância de uma flor com as suas pétalas, no esvoaçar livre de uma libelinha que percorre os campos infindos da planície, dos montes e vales. Aqui, dá-se a conhecer a humanidade expressa num simples sorriso: uma menina, alegremente, apreende o que a rodeia e a enfeitiça. É a entrega à vida como um testemunho pleno de contentamento.

A artista não cessa de construir um seu refúgio, sempre reinventado. A sua obra revela um pensamento sôfrego que emana uma entidade individual própria.

Povoa um espaço vivencial sem barreiras, sem muros. Vagueia sem destino, sem morada. Na variável de cada lugar, estabelece um itinerário como se tudo acontecesse sem se saber, antecipadamente, o fim. Tudo se mobiliza como se transitássemos num painel de azulejos, tabuleiro de xadrez, ou num de jogo de dados, onde circulam as suas peças bidimensionais ou em volume. A criação artística adquire, deste modo, uma dimensão lúdica onde opera sempre o mais imponderável. Cada nova peça cerâmica produzida é uma divertida experiência de surpresa e deleite. Cada trabalho é o reflexo de um estado de espírito, que palmilha lés-a-lés. Teresa Cortez balança entre o tempo da memória menina e o da mulher que conjectura sobre o idílico: sobe às nuvens, vem da terra, respira o ar campestre, baloiça ritmadamente no mundo mais inocente, onde impera a paz, com mulheres e homens a saltar e pular de satisfação. «Escutamos», em muitos dos seus trabalhos, um bando de pardais à solta, o cantar que ecoa em festa, coros, gritos esfuziantes joviais, sementes de futuro. Tudo é lugar de entretenimento, de encontro, de partilha, de espanto e assombração, perante o clarão que amanhece cada dia que acontece.

Teresa Cortez percorre as estações do ano definindo cores quentes para os dias mais secos e frias para os mais húmidos. O mais abrasador contrasta com o mais esfriado, o gélido. São quatro as estações do ano e são quatro os naipes das cartas de jogar. Tudo chama a atenção para a fantasia. A artista capta o nosso olhar para um mundo maravilhoso, onde todas e todos têm o seu espaço de acção, de jogo: tudo é composto, encenado, com actores que entram em cena nas peças cerâmicas… um teatro, um filme, o quotidiano, onde reis, rainhas, príncipes e princesas, com cavaleiros andantes a entrarem nas suas cartas e o cidadão comum, o povo, o poeta, o pintor, o cão e o gato, são peões que se apresentam nas brincadeiras mais inverosímeis.

Nas «banheiras», objectos escultóricos, Teresa Cortez apresenta-nos o cúmulo da brincadeira. Quem é que, em pequenino, já não sonhou alto numa banheira? Em tenra idade, com barcos, patos amarelos quá-quá, piratas, conquistadores, peixes, sereias, monstros aquáticos… com «voos», fora e dentro de água, a animarem os dias que lavaram o corpo e a alma da nossa infância. Quantos heróis se banharam na quimera acordada com ventos e vendavais, marés agitadas com ondas gigantes, e viram, nas nossas banheiras, as vidas a salvo. A autora exalta aqui espíritos da memória mais longínqua ou próxima e reflecte-os na água mais translúcida. Espelhos de água a figurarem «Pessoa» com os seus vários heterónimos e as pessoas no geral, avultadas ou delgadas, que se apresentam a nu ou com vestes encharcadas. Tudo enche a banheira de devaneio.

A chuva lava as mágoas, e os banhos límpidos, mantos de água, expurgam o indesejado até à alma… Teresa põe a nu o deleite de um banho como um gozo máximo de vida, na volúpia de uma gota que desliza na cerâmica moldada. Nada é antes do depois e, um pouco mais, as mãos falam connosco, porque moldam, pintam, descrevem peças que nunca estão sós. A obra de Teresa Cortez é um espaço de encontro por paragens, sem destino. Cada trabalho é uma paragem que culmina com uma nova viagem. A vida surge como um entendimento lúdico, que brinca, que joga, que rola e rebola, sempre com uma nova jogada que nos aproxima na amizade de partilhar o tempo que nos une.

Teresa Cortez tem uma vasta obra mural, de painéis cerâmicos que se evidenciam na paisagem urbana nacional: são várias dezenas os edifícios de habitação, hospitais, escolas, mercados e outros espaços públicos, que apadrinharam a sua obra, enriquecendo-se como pontos de exceção, assim notabilizados. A obra artística, ao ser vivenciada, adquire uma força exponencial, irrepetível – potencia a apreensão do nosso sítio, do nosso lugar, como uma memória individual e colectiva. Uma obra com um rosto formal expressivo, com significado e significante. A identidade morfológica de cada obra produz ritmos, valores cromáticos, que, com representações mais ou menos reais, mais ou menos fantasiadas, nos encaminham para uma experiência estética singular. O poder do fascínio pela arte encaminha-nos para o sonho, a recriação do próprio Mundo.

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