Rui A. Pereira
A obra desta autora é significativa e muito diversa, salientando-se, nesse sentido, a importância de muitos dos seus painéis de cerâmica terem sido idealizados para diferentes espaços públicos nacionais. Teresa Cortez inspira-se, no seu trabalho, em referentes muito distintos – do desenho à cerâmica -, utilizando o traço figurativo desprendido, associado à pintura cerâmica, o que acentua a intensidade sensorial e plástica. O processo criativo adoptado, no essencial, tem como base, primeiramente, o desenho que surge no papel pintado com aguarela, lápis de cor ou outras tintas, que depois é redesenhado nas placas de cerâmica ou jarras, para irem, finalmente, a cozer na sua mufla, a mais de 1000 graus centígrados. Os motivos são ilustrados no papel e transportados para serem recriados e reinterpretados na terracota, ganhando deste modo em plasticidade e intensidade cromática, podendo mesmo acentuar-se a componente táctil do trabalho, sobretudo, quando se ampliam as texturas e o volume. Os azulejos, as placas de cerâmica, vivem da cor, da forma ilustrada e, em muitos casos, também do volume em alto e baixo-relevo – algumas representações são mesmo pequenas peças moldadas que se soltam das placas cerâmicas acontecendo, por vezes, uma aproximação na criação das peças escultóricas.
Por outro lado, a artista não deixa de procurar potenciar, cada vez mais, as suas aptidões técnicas na construção dos seus objectos: dá-lhes, por isso, um cunho mais ou menos acabado, quer quanto ao trato figurativo, como relativamente à própria expressão a nível plástico, mas sempre todas as coisas em função do que lhe parece ser mais ajustado à expressão daquilo que reproduz…Através dos sentidos!
É interessante, por isso, comparar tecnicamente o conjunto dos trabalhos desta autora, porque, no imediato, podemos reconhecer a existência de uma grande diversidade de formas de representação: sendo que numas, descobrimos claramente o contorno, noutras, a adesão mais eloquente no plano da expansão cromática; em suma, as formas de representação, fundem-se, sobrepõem-se e ampliam claramente os valores expressivos.
O espectáculo policromático é claramente evidenciado no conjunto da sua obra. As cores encontram-se e somam-se umas às outras sem definir o limite na sua paleta – elas rasgam o seu imaginário e projectam-no como se fosse um arco-íris no horizonte!
Baralho de cartas e chapéus – nos painéis cerâmicos, “cartas de jogar” e “semblantes com chapéu”, a ostentação dos adereços dos personagens revelam e definem com agudeza, desde os tempos medievais, qual a sua origem social/hierárquica: os reis usavam as coroas, os sacerdotes a mitra e os guerreiros o elmo… Mas os chapéus e as coroas, para além de anunciarem uma determinada distinção social, naturalmente com diferentes variantes, também protegiam e enfeitavam, ao mesmo tempo, os seus portadores. Na obra de Teresa Cortez, estes acessórios referenciados, reflexo da sua imaginação, entram com todo o brilho num mundo de fantasia… – as princesas, os reis e as senhoras da burguesia, de lindos chapéus, são personagens do mundo imaginário das histórias de encantar; tais como os casais enamorados com cabelos doirados; os rostos sol e os ramos verdes que surgem recortados num fundo azul de azulejos e um amarelo resplandecente como uma luz, que parece iluminar de ouro um fundo celestial; as cartas de forma quadrada que sustentam os corações da princesa do amor – a princesa de ouros que tem coroa e cabelos de ouro, mas bochechas rosadas… Obviamente que as expressões são obrigatoriamente ternas e doces, com boquinhas pequeninas para dar corpo à ideia, embora frágil e indefesa, que atribuímos facilmente ao sorriso de berço! As figuras masculinas, por outro lado, são anafadas e roliças porque se pretendeu caracterizá-las com um ar amável: os reis barbudos, farfalhudos, que são as espadas, os paus, as copas e também ouros – e são vaidosos, como as princesas, possuindo bigodes trabalhados, longos cabelos e coroas imponentes. No meio de todas estas fantasias deslumbrantes, e magicando no jogo das cartas, vem à nossa memória a pequena Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, e a imagem desconcertante do jogo em hiperactividade com a presença extravagante, em pano de fundo, da Rainha de Copas.
Teresa Cortez nos seus chapéus retrata senhoras da burguesia, as que vagueavam nos terreiros com longos vestidos cintados, exibindo os chapéus de pele com cinteiros trabalhados, e os laços ornados com desenhos cozidos, ricos tecidos, rematados com penachos que transformavam estas ilustres senhoras em autênticos “pavões” ambulantes. A artista representa estas figuras de frente e de perfil, com os cabelos de diferentes cores e os olhos e lábios pintados. Numa delas os cabelos sugerem estar envoltos por uma malha de seda azul, cuidadosamente, a condizer com o sombreado da pintura dos olhos – uma elegância algo edílica e que tem muito dos sonhos cor-de-rosa, tais como: o daquelas vidas que vivem/ou viviam para exibir as virtudes da sua beleza, ou da sua luxúria; o do príncipe que é aguardado passionalmente pela sua amada… Com efeito, no conjunto das obras em questão, existe uma forte e clara intenção da artista em penetrar, em simultâneo, no domínio das temáticas do lúdico e da fantasia, e cremos com total êxito, portanto, na diversão e na alegria, mas também, no imaginário maravilhoso das histórias das fadas, de reis e rainhas, de príncipes e princesas…
Inês de Castro – o mote é a sentença de uma tragédia amorosa apaixonante. A tragédia vivida por Inês de Castro e D. Pedro I, reconhecidamente, é uma das grandes histórias de amor proibido transformada em lenda: “versão portuguesa de Romeu e Julieta”. A morte tornou-se inevitável e a vingança o seu desfecho.
D. Afonso IV mandou executar Inês porque punha em risco a soberania portuguesa – pertencia a uma família castelhana, era amante de seu filho D.Pedro I e tinha dele quatro filhos bastardos, possíveis herdeiros do reino. A dor, o infortúnio e a desesperança, acompanham o desenrolar deste verídico e “mítico romance”, com vicissitudes trágicas, incluindo, uma guerra civil entre pai e filho e que culminou, após a morte de D. Afonso IV, com o futuro Rei de Portugal a aniquilar de forma cruel os carrascos de Inês de Castro e a coroar esta, a título póstumo, a rainha. D.Pedro I mandou esculpir dois túmulos, lado a lado, para si e Inês. A figura de Inês, esculpida de corpo inteiro, repousa deitada sobre o seu túmulo, com uma coroa na cabeça, como se tivesse sido outrora rainha. As esculturas do túmulo de D. Pedro narram episódios da vida dos dois apaixonados, desde a vinda para Portugal de Inês, nobre Galega. Este túmulo, que encerra em si mesmo memórias de um período trágico da nossa História, tem sido fonte de inspiração para grandes vultos das artes, designadamente, na literatura, na música, no teatro, nas artes plásticas… Teresa Cortez vai extrair desta lenda arrebatadora o mote de inspiração para a construção das peças referenciadas.
As placas que a figuram são uma alegoria à paixão que perdura no tempo: o ícone do amor ilimitado. Em nenhuma das peças, de uma delicadeza extrema, identificamos sinais que indiciem a tragédia. Teresa Cortez captura, mais uma vez, a expressão da Alegria e põe de lado quaisquer intromissões perturbadoras -a rainha é coroada e apresentada com cores alegres ou com o vermelho que eterniza a vida. O coração é o símbolo da entrega, da satisfação amorosa plena dos dois enamorados. A autora, também aqui, cria a fantasia na história dos seus trabalhos – recordando as palavras de Camões que dramatiza o acontecido:
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito (…)
Teresa Cortez exalta exclusivamente o edílico da história, designadamente, dando volume às formas que destacam o rosto da linda Inês.
As quatro estações e os animais – nas quatro estações o Outono é caracterizado em tons de castanho e ocres; e o verão com cores quentes. As figuras femininas e masculinas surgem-nos com os cabelos em flor na Primavera, ou com folhas no Outono. Os personagens são como se encarássemos os rostos femininos como a expressão da lua, e os masculinos como expressão dos sóis. Inesgotavelmente, a natureza fulgurante resplandece vida: as cores surgem nos raios que poderiam ser o nascer dum arco-íris; as pombas prenunciam uma vida plena em liberdade e os homens e as mulheres vivem aqui em união perfeita, onde o amor, os afectos e o sonho, estão em consonância com a natureza – com a natureza humana; o Universo dos animais aparece-nos em harmonia e tudo o mais nos sugere acontecer de modo cordial: encontramos, por exemplo, com frequência, casais de porcos, libelinhas, gatos e muitos outros amigos, que transformam o universo do trabalho de Teresa Cortez numa constante fantasia: um enredo em que todos desejam dialogar e cooperar, para tornarem possível a configuração de um mundo, no mínimo, incrível!
No seu trabalho, pontualmente, detectamos, algumas afinidades com a pintura oriental2 – na forma do deslizar do pincel, na simplicidade aparente das linhas delicadas, que contribuem para estes ambientes, mas também na utilização de cores viçosas -. A libelinha é um exemplo claro desta forma de representação – um insecto voador donde extrai, com linhas suaves, a sua síntese formal.
O imaginário das nossas histórias – Teresa Cortez, no imaginário das nossas histórias, dá vida às recordações da meninice. As suas cerâmicas acabam por ser o habitat de fábulas onde encontramos os animais que dão corpo às diversas narrações: carochas que nos reportam para o mundo do João Ratão e da Carochinha; rãs que surgem frequentemente como os cantores exímios das músicas que ecoam nos bosques destes contos; gatos que espreitam pelas janelas e que vagueiam pelos telhados das casas; sábio hipotético que caminha, com as suas grandes botas bem lustradas e atadas, algures por aqui; e muitos, muitos outros amigos, participando nestas vivências da bicharada, na terra, no ar e na água, onde também encontramos, entre muitos outros, porcos que nos transportam para uma realidade cruel – a dos adultos e a dos mais pequenos – onde triunfam os mais fortes… Porcos, feios e maus? Nos tempos que correm quase tudo surge, aos nossos olhos, de forma colorida, convidativa, prometedora… (Como se vivêssemos num mundo nosso amigo!) através duma propaganda generalizada dos meios de comunicação, especialmente, da televisão, dos novos produtos de consumo, do shopping, da loja da esquina… E tudo isto vai acontecendo numa sociedade, que é a nossa, cada vez mais acrítica e alienada!
Com a finalidade de exaltar todo um ambiente infantil, Teresa Cortez explora os efeitos de cor, não apagando, no entanto, a crítica mais corrosiva de histórias que aqui nem sempre terminam, obrigatoriamente, com o quase sempre ridículo termo: “… e foram felizes para sempre”. Os porcos não deixam de ser representados, ternamente, com um grande coração esvoaçante, tal como um Cupido a flutuar no ar! O pull-over do apaixonado anuncia esta união rosa, à semelhança da cor do vestido da porca amada/amor – o porquinho será já o rebento herdeiro desta família modelo? E o animal grosseiro com um ar devorador, faminto e a salivar, será um subserviente protector? Depois restam-nos os dois pássaros mais próximos do céu – serão estes os prometidos seres livres?
Num outro enquadramento e numa outra peça, surge novamente um amistoso porco, mas, neste caso, ao lado do cão, do gato, do cavalo e todos estão unidos no mesmo querer. Talvez por isso, todos se fizeram desfilar em frente à casa da Carochinha, que apregoava à janela: “quem quer casar com a carochinha tão bonita e formosinha?” Nesta narrativa, o senhor porco, não foi o eleito, mas sim o senhor Ratão que, lamentavelmente, acabou no caldeirão! Teresa Cortez ilustra de forma realista esse momento cruel que, por razões da gula, levaram o seu noivo a abeirar-se do caldeirão e nele cair. No palco da cerâmica, em questão, irrompem, os noivos, num plano aproximado – será que nesta história, a autora salva o amor do infortúnio? Sempre houve casamento? E se existiu, foi duradoiro? Com efeito tudo acontece numa única peça, com as várias cenas da sua história justapostas, por vezes cruzadas, dando mesmo a impressão de que tudo acontece num único tempo e num mesmo lugar. A acção aglutina-se no espaço cerâmico: a forma e a cor dos seus figurantes e adereços são registados para configurar um todo. A autora não se coíbe de acrescentar o mais ínfimo pormenor à cena e de considerar que nestes seus trabalhos o importante é que nenhum dos participantes, de cada história, seja esquecido. Provavelmente algumas destas figuras poderão ser algo de reflexivo da própria artista…
Porque, falando de sonhos e do mundo da fantasia, a autora interpreta, noutra ilustração, os pensamentos perversos do Lobo mau – o confronto das cores quentes com o negro do lobo mau é incontestável. O Capuchinho é dum vermelho intenso e luminoso, as tranças de ouro reluzente e as estrelas cintilantes, dum azul celeste, envolvem a menina de cores enérgicas. Os seus olhos estão fechados porque ela está em pé, assombrada, e não consegue encarar o seu pesadelo? Este azulejo desenhado com linhas determinadas parece representar uma cena num teatro de marionetas; e podemos mesmo imaginar duas mãos a comandar a acção do destino das duas personagens no palco. Numa outra história, dos contos de fadas, a autora representa uma jovem rodeada de caixas de sapatos e, numa delas, registado em destaque, emerge o seu nome, para que não permaneçam incertezas neste emaranhado mundo de sapatos e pezinhos, dos quais só um par é pertença/marca da gata borralheira – a Cinderela futura princesa! Ainda nos contos de encantar a autora apresenta-nos a cerâmica “caras brancas ou almas brancas”, que nos alude para a sua história da Branca de Neve e dos sete anões – um jogo com a cor de pele. Assim, a Branca surge Negra não só no cabelo, mas também na pele, e o seu príncipe é o homem do turbante da Palestina. A madrasta má é Branca e cândida, e os anões são todos às cores. As serpentinas, de cor azuis e vermelhas, que proliferam, são a harmonia entre as cores contrastantes: trabalho que brinca com o significado das cores e questiona o que é, muitas vezes, estereotipado – como o bom ou o mau.
A água – as memórias da juventude idealizada através do mergulho livre na água cristalina e translúcida. Neste conjunto de azulejos encontramos um mundo ideal repleto de cor, com o azul da água e do céu a receber o espectáculo cromático, que se pode contemplar com a luz solar que amanhece. A menina mergulha, nada, e como bóia flutuante estende-se, entregando-se ao calor do sol que a espreita. Ao flutuar com a sua bóia, com dois barcos à vela em pano de fundo, ganha forma ao ponto de se tornar tridimensional. Também os peixes e a tartaruga ganham volume nestas peças. Ainda num outro azulejo, a artista, vai mais longe, na vontade de soltar as suas figuras do bidimensional e do real, ao idealizar alguém que se entrega ao sonho de Ícaro, e que parece ser a extensão dum balão – o sonho, o lúdico está exposto no feminino e o corpo representa a liberdade, o desprendimento e o sentir a intensidade da sua relação com a natureza. A envolvência do corpo humano com o corpo da terra, da água e do ar é intenso!
Os objectos escultóricos cerâmicos – eles exortam à insurreição na banheira; são corpos nus que, sejam eles porcos ou anjos, convergem no acto livre de entrega ao fluido líquido em imersão total ou parcial. Será que o líquido destas banheiras exala um vapor balsâmico que enfeitiça todos? O delírio é por demais evidente: será que os presentes se banham neste líquido para a sua higiene pessoal? Esse não terá sido o pensamento substancial que levou a autora a criar estas peças; provavelmente fixou-se na ideia do banhar dos corpos como um acto de entrega livre e ilimitado: um ritual de purificação, ou uma celebração da vida, seja ela num estado individual ou em convívio social? …Com efeito, sente-se à nossa volta um frenesim contagiante, talvez porque possamos estar, ao mesmo tempo, também perante uma forma de apaziguar as almas desavindas – quer sejam as almas dos anjos ou dos diabos! Uma menina longa e roliça parece estar adormecida mas estende as pernas para fora do leito coberto por um manto líquido azul; outras duas peças, um corpo masculino e outro feminino, mergulham ambas em banheiras individuais, expondo as suas coxas, pernas e sexos, sem quaisquer vestígios de melindre. Por outro lado, de modo semelhante, apresenta-se um elefante que, por tanto brincar com a sua grande tromba, parece desejar a própria água que o emerge; um porco, por sua vez, não perde o pé e participa também na purga partilhando o seu leito lácteo com um anjo – neste caso, porém, o cromado cerâmico é o branco; será porque ela é uma cor purificadora? Entretanto, uma menina e um menino, não abdicam da sua intervenção na repartição do espaço de deleite…Mas são muitas mais as personagens amistosas envolvidas: o cão, a vaca, o jacaré, um bebé e até seres híbridos, e outros ainda que não se vêem mesmo, porque foram engolidos por uma dádiva do prazer aquático!
A autora, como podemos confirmar facilmente, neste novo ciclo da sua produção cerâmica, desprendeu-se inteiramente do bidimensional, dando às suas peças a expressão da escultura. São peças duma escala reduzida, de facto, mas é possível imagina-las, uma a uma, a serem meticulosamente moldadas. Elas são, lapidarmente, objectos escultóricos hospitaleiros: apetece mesmo acolhe-los nas palmas das nossas mãos. A artista decidiu assim brindar-nos com esta família sem fim, que é uma multidão de figurantes que povoam o seu imaginário. Sente-se ainda que o volume cerâmico acrescenta, em alguns momentos do ciclo criativo, inequivocamente, uma explicitação clara da volúpia, quase sempre, emanada da pureza da comicidade presente dos gestos e das formas, mas também, especialmente, da busca incessante e infinita do prazer no acto de criar, inquestionavelmente, reflectido nos vários ciclos da sua criação artística.